quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O Bizarro Sonho de George Holanda




No início, estamos por nossa conta. Talvez como sempre estivemos nessa vida. Somos recebidos com carinho, mas não existem indicações de onde ficar, sentar, o que fazer... Esperamos por orientações, por saber quando irá começar o espetáculo... Mas ele começa sem ser anunciado, simplesmente começa.

Acabamos dentro da cena em diversos momentos, sem sabermos onde nos colocarmos. A cena nos engole. Isso nos causa alguma desorientação. Gera dúvidas. Mas também nos torna muito próximos dos personagens, ampliando nossa percepção. Há um contato desburocratizado.

Na primeira cena surgem três homens (os três personagens). Eles manipulam lâmpadas (coloridas) com inconfundível angústia e desconforto, traduzindo o que, possivelmente, é a metáfora mais marcante do espetáculo e que envolve a utilização da luz. Esta luz inicial remete à idéia de luz como conhecimento, elevação da alma, consciência plena, sabedoria, iluminação, enfim.

Tendo como ponto de partida o desconforto humano em alcançar este estado de iluminação, expõe-se um homem de hoje ausente desta qualidade e mostra-se um caminho a se percorrer para se alcançar esta iluminação.

Na verdade, para O Bizarro Sonho de Steven, este caminho para a iluminação não levaria a um lugar desconhecido, mas a um caminho de volta, para um lugar em que já se habitou, mas que, de alguma forma, está esquecido, pois já alcançamos essa iluminação em um momento anterior.


Indicativo mais forte disso é a utilização de O Portão de Roberto Carlos nesta primeira cena. Não à toa, esta música (de um autor sentimental), aponta exatamente uma sentimentalidade como pista para o caminho a seguir, o que torna essa música uma chave para a compreensão do espetáculo.

Eu cheguei em frente ao portão
Meu cachorro me sorriu latindo(...)
Tudo estava igual

Como era antes
Quase nada se modificou
Acho que só eu mesmo mudei
E voltei!...

Eu voltei!
Agora prá ficar
Porque aqui!
Aqui é meu lugar(...)

Fui abrindo a porta devagar
Mas deixei a luz
Entrar primeiro
Todo meu passado iluminei
E entrei!...

(...)

Sem saber depois de tanto tempo
Se havia alguém a minha espera
Passos indecisos caminhei
E parei!...

Quando vi que dois braços abertos
Me abraçaram como antigamente
Tanto quis dizer e não falei
E chorei!...

A música defende uma volta a um lugar abandonado há tempos, um lugar que guarda memórias, e este revisitar provoca um encontro consigo mesmo mais significativo do que a busca por lugares distantes.

E possui o espetáculo o desejo, até a esperança, de que o homem se ilumine, buscando uma mudança para um rumo que lhe alimente mais do que o mundo em que se encontra e que construiu.

Homens contemporâneos numa contemporaneidade desconfortável. Numa cena, um personagem faz cálculos incessantemente, mas sem encontrar soluções. Em outra, um deles fala sem parar o nome de movimentos estéticos, mas também não se satisfaz. Da mesma forma, um personagem parece claustrofóbico quando aparece sua imagem na televisão, não cabendo naquele enquadramento.

Em outro momento, um dos personagens tenta nos atropelar, e parece gostar disso. Noutro, um nos engana ao parecer não poder andar, para logo levantar e começar a sambar. Existem humilhações, xingamentos e tapas entre os personagens, em abundância.

Tudo isso demonstrando um rumo equivocado, carregado de uma egolatria, que tem momentos extremos de violência e auto-flagelação.

Como saída para essa situação, o espetáculo, assim como a cena inicial ao utilizar-se de O Portão, aponta para uma sentimentalidade, uma sensibilização deste mesmo ser.
Um delicado sentimento de reencontro. A volta a um lar, ao sorriso (enxergar um sorriso em um cão), a uma mudança interior e anterior, para o qual seria necessário uma sensibilização do homem.

Voltando-se à utilização da luz do espetáculo, este tem suas cenas iluminadas por televisores, monitores, farol de motocicleta, lanternas... tecnologias necessárias mas cuja utilização não prescinde de uma luz espiritual, tanto que estas são apresentadas em cenas grotescas.

Diferente da cena inicial, na qual ainda que os personagens estejam manipulando lâmpadas, estas guardam uma conotação diferenciada das demais utilizadas no espetáculo. Talvez seja a única cena em que a luz possui esse caráter, excetuando-se a cena final.

Com estas lâmpadas do início existe um relacionar-se diretamente com elas, enquanto simplesmente luz, indicando um desconforto exatamente a partir daí, o que mostra um estado internalizado exposto através dessa relação. Essas luzes representam a própria iluminação interior buscada pelo homem e demonstra a dificuldade em alcançá-la.

Finalmente, na última cena, o espetáculo volta ao seu início, mas de uma forma diferente (assim como O Portão). O clico se fecha. E somos expostos à luz negra, a anti-luz artificial, mas que remete à luz do início, a tecnologia utilizada tão-somente para revelar o afeto humano. O contato invisível, sutil, que estava presente no início, e que nos conecta para uma transformação, o espectador do início que não mais é o mesmo do final.

Neste momento, reencontramos os atores carinhosos do início. E percebemos que estamos marcados por eles. E neste contato, neste sentir, neste invisível descortinado, somos revelados ao caminho proposto por O Bizarro Sonho de Steven, uma volta a um lugar estranhamente familiar. Uma volta que pode ser no presente. Uma volta a algo que já possuímos. Uma volta sonhada. Um sonho, que, talvez, infelizmente, seja bizarro demais para o mundo de hoje.


George Holanda

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